24 de março de 2009

BBB alimenta a fome de mentiras

Nelson Rodrigues dizia que as novelas eram importantes para satisfazer a nossa fome de mentiras. Com a chegada dos reality shows nas televisões de todo o mundo, uma das idéias que mais se tem alardeado é a de que a teledramaturgia entrou em crise diante de um formato narrativo absolutamente novo. No fundo no fundo, o que se discute aí é a perda do poder sedutor de uma narrativa audiovisual baseada na mentira-ficção, dando lugar a uma outra, fincada sob a possibilidade da verdade-documental.

O próprio nome do gênero sugere isso - "show da realidade" - e o fato é que muita gente vem embarcando nessa viagem. Afinal, os altos números de audiência que os BBBs registram mostram isso. Mas eis que na edição deste ano, que é a sexta, esse números que eram crescentes viraram decrescentes. A coisa tá de um jeito tal que a própria Globo já divulgou que ainda produzirá mais duas edições apenas devido a uma questão contratual com a Endemol, empresa que detém a patente da idéia.

Por outro lado, as novelas, antiga paixão nacional, têm registrado altos índices de audiência. E mais: estão no centro da disputa de mercado e monopólio entre a Globo e a Record, com participação minoritária do SBT. Então, parece que a "revolução" trazida pelos reality shows começa a esvaziar-se e muito mais rápido do que se poderia imaginar. Isso deve estar intrigando os diversos (muitos mesmo!) pesquisadores da área da comunicação que hoje se dedicam a estudar o fenômeno BBB e congêneres.

Este não é meu objeto de pesquisa mas tenho a desconfiança de que a subida e a (provável) derrocada do BBB está diretamente ligada a uma falsa relação estabelecida entre verdade e mentira proposta pelo programa e plenamente aceita por nós telespectadores. Apesar de imaginarmos estar consumindo algo de efetivamente novo na TV, assistimos há seis anos a algo que tem uma estrutura narrativa muito semelhante às novelas, apenas com um invólucro diferente.

Afinal, o que é prestarmos atenção à vida das pessoas diariamente, acompanhando cada acontecimento como a um capítulo de folhetim, torcendo para a vitória dos "bons", o fracasso dos "maus", o desenvolvimento de romances e, acima de tudo, pela realização de disputas que se corporificam através de briga, bate-boca, quase violência física (lembram da Tina?) e muita, muita baixaria? O prazer provocado pela surra que a personagem de Malu Mader deu na Laura (Cláudia Abreu) de Celebridade é igualzinho ao que se sente quando dois ou mais participantes de um BBB partem pra baixaria.

De realmente novo, os BBBs têm o invólucro: cenário, origem dos atores, detalhes do tipo. Há quem defenda o caráter inovador do programa devido à participação do público na decisão de quem cai. Mas isso é outra ilusão, pois sabemos muito bem que hoje em dia os rumos tomados pelo enredo de uma novela estão diretamente relacionados a pesquisas quanti e principalmente qualitativas feitas o tempo inteiro com o público. Em parte, a gente já decide há tempos. A outra parte fica por conta do condutor do folhetim, o "grande irmão", no caso, representado nos BBBs pelo diretor Boninho e sua equipe, em especial a dos editores.

Ao consumirmos os BBBs, não abrimos mão de nossa "fome de mentiras" detectada por Nelson Rodrigues. Pelo contrário: sofisticamos essa fome, nos fazendo acreditar que o que há ali é realidade. Mas aí vem a sexta edição e agente já não acha essa graça toda. Mas é claro: cientes das punições externas, os participantes estão mais mentirosos e, paradoxalmente, mais verdadeiros. Eles mentem quando constroem em torno deles uma aura de bonzinhos, de resignados e interessados mais nas relações humanas desenvolvidas dentro da casa do que no prêmio de um milhão.

E eles são verdadeiros porque no dia-a-dia fora da telinha televisiva é assim que a maioria tende a agir. Bem comportados, tentando se equilibrar numa corda bamba repleta de exigências comportamentais. Em nosso cotidiano, também temos um "grande irmão" e nisso a metáfora de Orwell é perfeita. Os condicionamentos sociais estão aí e, modo geral, trabalhamos a favor deles, mesmo que inconscientemente. Os participantes do BBB6 têm feito isso com maestria e a gente, tão envolvido com a trama da vida real, mal percebe essa assombrosa semelhança.

Ana Ângela Farias é jornalista, professora e doutoranda em Ciências da Comunicação. Escreve neste espaço quinzenalmente.

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